Hoje li que escrever cura.
Mas tal como um desabafo só é libertador quando nos sentem e nos ouvem, escrever por si só não nos cura. Ajuda na cura se formos lidos, compreendidos e tivermos o apoio dos outros. Aquele apoio que não conseguimos ter quando passamos por aquilo que nos leva a escrever.
Por isso decidi tornar público relatos do meu profundo amor, profundo desgosto e profunda violência que atravessei no último ano da minha vida. A presença constante da minha tristeza talvez só possa dever-se ao facto de a única pessoa que tinha o meu coração nunca me chegou a sentir, não me soube ler e nunca chegou a ter espaço para me ver.
Espero que as minhas palavras, que as dirijo a uma pessoa só, possam ser lidas por outras tantas pessoas e que isso me ajude a libertar o meu coração.
Escrevo também porque quando atravessei esta situação passei dias a pesquisar sobre o tema, a ler fóruns e testemunhos de outras pessoas, de outros países, de outras crenças, mas muito poucas foram as histórias que se pudessem aproximar à minha. Este é o meu testemunho sobre uma triste história que espero que venha a servir de análise e pensamento a um debate mais profundo sobre a IVG e a violência psicológica, numa perspectiva contrária à mais comum: a não aceitação de um homem perante a escolha de uma mulher não estar preparada para a maternidade.
Tivemos a confirmação que estávamos grávidos no dia 16 de Julho, sábado, em tua casa. Embora me estivesse a sentir mal fisicamente, e ansiosa, confesso que fiquei contente. Pela primeira vez, imaginei vida com alguém e aquelas banalidades das pessoas. Já me imaginava grávida de um segundo, com o primeiro na mão e com os cães de um lado para o outro, contigo, sempre, sempre, a tomar conta de nós, como tantas vezes pintaste.
Depois de me confrontar com uma realidade biológica que até então desconhecia, confrontei-me - talvez pela primeira vez - com uma situação que dependia só de mim no seu todo. O espelho da responsabilidade física e psicológica inerente às condições sociais, uma autêntica reviravolta à minha vida, percebendo que só de mim poderia depender a sobrevivência do meu amor. Senti-me ao abandono, às voltas em mim mesma. Foram os dias mais longos da minha vida; a cada hora sentia uma coisa nova, a cada dia o meu corpo mudava e o meu desespero na solidão teimou em crescer.
Acompanhaste-me na minha primeira consulta. Quando saí partilhei contigo o que estava a sentir em relação à minha gravidez e a tua raiva aumentou a cada palavra que saiu da minha boca. Questionaste o porquê de eu ter arriscado não me ter protegido - na tua perspectiva, arriscaste porque estarias pronto uma vez que eu era a mulher da tua vida -, disseste que o que eu pensava fazer era extremamente feio e maldoso e que nunca pensavas que eu seria capaz de o fazer. À medida que ias bebendo o teu litro de vinho - o meu enjoo era tal que não te conseguia acompanhar - as tuas palavras foram tornando-se mais agressivas. Já me estavas a culpar por algo que eu ainda não tinha feito e ainda não tinha realmente decidido. Cheguei a dizer-te que de futuro podíamos pensar em termos bebés. Disseste que não. Ou era agora ou nunca.
Parecia que te tinhas esquecido que para poderes olhar para o nosso projecto de vida, tinhas que fazê-lo através de mim, ou seja, olhar primeiro para mim, respeitar a minha liberdade, conhecer-me nos meus medos - que não te disponibilizaste nunca a sentir.
Não se diz a uma mulher - nem nesta situação nem noutra qualquer - as coisas que tu disseste. Um tema tão delicado e tão feminino. Questionei-me várias vezes que tipo de pai serias tu de uma suposta menina, como tanto querias, que perante um tema destes se estava a comportar de forma tão irascível.
Chegaste a usar as minhas próprias palavras, com que te descrevia o que me fazias, contra mim, como se eu te estivesse a fazer o mesmo.
Não me abraçaste uma única vez. Uma das minhas maiores dores, foi ter que me estar sempre a despedir de ti e a explicar do meu lado, o quanto eu precisava de ti e do teu colo, que cada vez que tentei ter, foi um simples insucesso porque estavas "magoado" e também "tens sentimentos".
Como é possível tanta dor ser-te tão invisível?
Ao contrário do que agora dizes, eu nunca te pus de parte. Foste bem claro que não querias acompanhar-me nem destruir o equilíbrio que eu tinha à minha volta (não sei se é suposto agradecer tamanho bondade..!).
As lágrimas que me caíram e o que eu pedi por ti, só quem esteve comigo sabe. Um abraço teu, naqueles dias, teria valido tudo.
Nunca pus em causa que tu estivesses a sofrer, bem pelo contrário. Estava grávida e devastada e ao mesmo tempo preocupada contigo. No dia em que tive uma segunda consulta no hospital e onde fiz uma segunda ecografia, e uma segunda consulta de planeamento familiar, falei com médicos e enfermeiras, resolveste tornar público via facebook e manifestaste o teu luto com um quadrado preto e uma música que é uma dicotomia entre inocência e violência; uma canção de embalar uma criança, que lamenta o infortúnio que é um filho ter que suportar o abandono de uma mãe. Estavas a punir-me por matar a tua filha. Tornei-me uma assassina. Querias que eu me sentisse mal. Bom trabalho!
Espero que os likes te tenham embalado a tristeza. Não tenho palavras para descrever a exposição que deste de um tema que faz parte da nossa (minha) esfera privada. Não entendo como te manténs impávido perante isto.
Tinha mais 3 dias de espera para tomar a minha decisão final. Foram os piores dias da minha vida. Intercalados com as tuas manifestações depravadas, mal me falavas.
Nunca tive tão triste e tão sozinha em toda a minha vida. Perguntaram-me se no tempo de espera (ainda esperei umas 2 horas) se não queria companhia dos familiares que me acompanharam. Disse que não. Preferi ficar sozinha. Doravante, esta tornou-se a minha vontade.
Talvez o meu desespero fosse uma manifestação de instinto maternal. Talvez a minha tristeza de um coração partido e a minha angústia por não me sentir amada por ti. Chorei que nem uma criança.
Interrompi a minha gravidez e vi-me num estado que nunca tinha visto; até a médica me veio dar um beijo. As enfermeiras acolheram-me como mães e até senhoras que lá estavam e tinham interrompido gravidez falaram comigo. “Um homem que maltrata uma mulher numa situação tão delicada como esta, não merece o seu amor” - ouvi eu. Passado 1 dia, sugeriste que era melhor ir ter contigo, quase num tom de chantagem porque se não, "não tínhamos salvação possível" e era o mínimo que podia fazer por ti e pela nossa relação. Consegues hoje perceber que a minha ida pôs em causa a minha dignidade e integridade física e psicológica?
Precisava do teu colo, e fui procurá-lo. O meu amor sobrepôs-se às minhas dores físicas e emocionais, que tu jamais poderás reconhecê-las (até chegaste a desvalorizar as minhas dores!). Reflexo disso foi o que aconteceu quando cheguei ao pé de ti: sozinha na tua sala, perdida, com dores, a chorar desalmadamente enquanto tu, na cama às escuras, dizias que agora íamos ter que passar por isto, como se eu tivesse de castigo. Com que moral é que tu me falas em dignidade?
Não é preciso ser-se mulher para se perceber que as tuas palavras são suficientemente pesadas para deixar alguém na merda, espero que hoje consigas entender. Um homem sensível - como tu te intitulas - deverá entender.
Continuei a sentir-me sozinha porque te senti distante e zangado. Não é pela distância física, é pela sensibilidade que temos em chegar ao coração uns dos outros.
Hoje, continuas sem me dar um abraço, sem me pedires desculpa por me teres diminuído como ser humano e pior, como mulher.
A minha gravidez desarmou-me e não me permitiu mais voltar a mim. Ao ponto de me deixar atravessar este túnel negro e de extrema violência psicológica. Agora posso contar que ouvi as seguintes frases:
- Ainda vamos a tempo de remediar a situação. Eu apoio-te no que for preciso.
- Obrigada por seres a mãe dos meus filhos.
- Nunca pensei que fosses insensível ao ponto de fazeres uma coisa destas.
- Quem és tu afinal? Eu não te conheço.
- Se não estás preparada, podes passar-me o filho para as mãos depois de o teres e eu tomo conta. Há muitas histórias de homens que tomam conta dos filhos sozinhos.
- Ao menos traz-me o embrião num frasco em formol para eu me poder recordar que um dia na vida tive um filho.
- Ou uma ecografia, nem a ecografia posso ter? Para me lembrar que algum dia fiz alguma coisa boa a vida.
- Estás a matar a minha filha.
- Acredita que não queres que eu fale contigo. Não quero estragar o equilíbrio que arranjaste à tua volta. Estou extremamente magoado.
- Queres que eu esteja presente para quê? Eu vou andar aos berros e não vou deixar que façam o que tu queres. É isso que queres?
- Tu afastaste-me e puseste-me fora do processo.
- Tu magoaste-me.
- Eu também tenho sentimentos. Todos se esquecem que eu também estou a sofrer.
- Não quero mais falar sobre este tema.
Não sei se algum dia vou conseguir deixar de me sentir ligada a ti, de uma forma que tu jamais compreenderás mas espero conseguir encontrar a minha calma, a minha paz e a minha alegria, de quem já sinto saudades. Estou cada vez mais próximo e toda e constante revisão à história me ajuda. Nunca me senti tão mulher e nunca quis tanto ter bebés.
Agora pergunto-te eu: quem és tu afinal?
Qualquer mulher que interrompeu uma gravidez, qualquer mãe, qualquer homem, qualquer pessoa minimamente sensível, tem capacidade de compreender a delicadeza do tema. E só uma mulher sabe realmente o que é fazê-lo.
Definir um embrião como uma pessoa com direitos iguais ou superiores aos de uma mulher é uma aberração. O primeiro direito de um bebé é ser desejado e acolhido numa família estável, recheada de amor e polvilhada de empatia e a maternidade é um assunto que diz respeito à mulher e à vida da mulher. Um grande senhor um dia disse-me: “A mulher compromete-se e o homem participa”. Agora percebo, melhor do que nunca.
A culpa e o corredor do julgamento pelo qual me fizeste passar, não correspondem às convicções que fui ensinada, aos princípios e valores humanos que devemos ter no trato humano, o bom senso e a empatia que são pressupostos naturais dos seres vivos.
Uma decisão destas é uma decisão íntima e pessoal que só pode receber apoio e solidariedade.
Amar é respeitar e cuidar. Não há espaço para ter um bebé sem estes valores.
A interrupção de uma gravidez não é um crime. Crime é não saber amar.
Obrigada por me acompanharem.
Julieta, 31 anos